Contos de Fantasia | A quebra

Alegria. Todos cantavam e dançavam ao cair da tarde em uma euforia contagiante. Os últimos raios de sol no oásis brindavam a todos com um céu de rico colorido e rara beleza. Refinadas odaliscas, trazidas pelo príncipe do norte, contorciam-se sinuosas ao som grave e contínuo da cítara, exibindo toda voluptuosidade de seus corpos morenos. O cheiro de boa comida se espalhava por todo o lugar, carregado pela brisa leve, pois a muito as tempestades do deserto haviam se acalmado.

O oásis de Al-jahara, ao sul do Deserto da Perdição sempre fora um lugar tranqüilo e bucólico. Lar de uma das poucas tribos sedentárias desta região de Arton servia de entreposto para todas as comitivas vindas do norte que tencionavam atravessar a Grande Savana. Hoje Al-jahara se enfeitou de flores para comemorar o que talvez fosse o maior acontecimento desse povo. O casamento entre Nazira, filha de Agul Aian Barak e o príncipe dos Zuagires do Norte. Esta união simbolizava a reunião de todas as tribos Sar-Allan, desde os Shariff, habitantes do oásis e guardiões dos pergaminhos da verdade, até os guerreiros Zuagires, formando assim um só povo do deserto.

Muitas mucamas corriam e se ouriçavam em torno da tenda onde era preparada a jovem Nazira para seu matrimônio. Enquanto os guerreiros do norte se banqueteavam com a farta comida e admiravam as belas odaliscas em sua dança hipnótica, a noiva era preparada para que estivesse esplendorosa. Segundo a tradição dos Sar-Allan o ritual aconteceria ao amanhecer, quando Azgher,o Deus Sol, derrama sobre o deserto seus primeiros raios renovadores. A balburdia das serviçais só foi interrompida com a aproximação de um homem, que caminhava diretamente para a tenda. Apesar da surpresa, todas logo voltaram a seus afazeres ao perceber que aquele que se aproximava era o irmão da noiva, o jovem Fazal.

Apesar de sua pouca idade, apenas vinte e uma primaveras, o filho de Agul se tornara um bravo guerreiro e fiel defensor da fé em seu Deus. Como todos os paladinos de Azgher, ele mantinha seu rosto oculto por uma máscara desde os nove anos, idade em que fora aceito na ordem. Era forte, mas não muito alto e estava feliz de poder ver seu povo em paz, pronto para sorrir e festejar esta união. Viera até a tenda de sua irmã para lhe dar conselhos, pois queria que Nazira se apresentasse como uma boa esposa. Ela seria a sétima esposa do príncipe do norte e segundo a tradição dos Sar-Allan, a sétima esposa representa a boa ventura e a prosperidade de um senhor.

O que Fazal não sabia é que sua irmã estava longe de aceitar esta tradição.

— Nazira! — exclama o guerreiro sagrado ao adentrar a tenda. — Vim ver como estás minha irmã. Seu noivo está ansioso para que Azgher nos devolva a dádiva do dia e ele então possa vê-la.

A bela menina de olhos castanhos, claros como o doce mel, ergueu levemente a cabeça para contemplar seu irmão. Tinha duas mucamas que mexiam incessantemente em seu cabelo castanho e muito liso, como se quisessem arrancá-lo e refazê-lo ao seu bel prazer, enquanto uma outra massageava seus delicados pés em uma tina de água morna. Lançou um olhar que o mais bruto de todos os guerreiros perceberia ser de melancolia, soluçando uma resposta em tom muito baixo.

— Bem.

Fazal sem perceber a carga emocional depositada naquela palavra prosseguiu.

— Pois saiba que vim ter contigo minha irmã, falar-te que é desejo de nosso pai que sejas a melhor das esposas para o seu futuro marido; — ele caminhava pela tenda e continuava a falar. — isso é muito importante para nosso povo e bem sabes que o senhor dos Zuagires tem, entre suas esposas, até princesas de terras longínquas.

Nazira de súbito bate palmas e pede para as mucamas que saiam rapidamente. Esta atitude interrompe o discurso do jovem guerreiro que fica surpreso ao voltar-se para sua irmã e perceber um olhar cruel e cheio de amargura.

— O que dizes meu irmão? Por que fazem isso comigo? Que tradição maldita é esta que nosso pai me obriga a cumprir?

— Não entendo minha irmã? Por que tens tamanha dor em suas palavras e as profere de forma tão afrontosa? — disse Fazal de súbito sem realmente entender tamanha dor naquelas palavras.

— Eu estou cansada. — Nazira dá de ombros e as primeiras lágrimas caem. —Estou cansada de nosso povo! Desta tradição maldita que me humilha apenas por ter nascido com um ventre ao invés de uma espada entre as pernas. Desprezam-me por acreditar que tenho apenas uma finalidade, a de servi-los.

Fazal ainda surpreso com a reação da irmã tenta elevar seu tom de voz para rechaçar a insurreição de sua irmã através da intimidação.

— Não blasfeme Nazira! O que dizes não tem fundamento. Deves...

— Estou cansada que me digam o que tenho que fazer! — ela interrompe seu irmão em um tom mais alto de voz e aos pouco vai se aproximando dele. — Quem é nosso pai para pensar que tem direito de me vender para um homem que sequer conheço. Para ser sua sétima esposa! Sétima? Nosso pai só pensa no benefício político disso tudo! Eu o odeio!

O guerreiro de Azgher golpeia a face da jovem noiva com a mão aberta, interrompendo seu agressivo discurso e fazendo com que a mesma leve suas mãos ao rosto. O barulho da festa fora da tenda não é capaz de interromper o olhar dos irmãos que durante segundos intermináveis duelam seus sentimentos que transbordam de suas almas.

— Isto é um delírio minha irmã. A sombra de Tênebra já invadiu nosso mundo e provoca devaneios em sua cabeça. Prossiga com os preparativos e reze para que Azgher ilumine teus pensamentos e afaste a sombra da loucura. — e assim dizendo, Fazal deu as costas a sua irmã e saiu apressado da tenda deixando sua irmã só com seus pensamentos.

A dor do golpe de seu irmão alimentava ainda mais o ódio de Nazira. Ela não acreditava naquela tradição. Odiava seu pai e agora também seu irmão, por não entende-la. Estava cada vez mais certa de seu destino. Não iria cumprir aquela sentença. Iria para um lugar onde jamais lhe perseguiriam.

* * *

Fazal se afastara da festa, absorto em seus pensamentos. Os acontecimentos lhe deixavam confuso e aquela noite parecia mais fria que de costume. Os servos de Azgher não costumam se sentir bem durante a noite, pois é nesse momento que Tênebra espreita o povo protegido daquele que tudo vê. Muitas idéias passavam pela sua mente como um redemoinho incessante que nunca revela seu centro.

Por que sua irmã pensava desta forma?

Esta era a pergunta que mais se repetia em seus devaneios. Embora fosse jovem, não se lembrava de nenhuma mulher da aldeia que tenha desobedecido a sua família e questionado seu casamento. Uma tradição que fora passada de pai para filho, geração a geração, por centenas de anos e nunca antes negada. Era tão simples, era o certo a ser feito.

Fazal, se sentindo confuso, rezou para que Azgher lhe iluminasse, e ele pudesse entender a revolta de sua irmã. Não queria odiá-la, pois era seu sangue. Ela ofendera seu pai e deveria ser punida por isso, mas não queria no fundo odiá-la. Percebeu, por um instante, que algo mudava a sua volta. O vento estava aumentando sua velocidade. Muito rápido para esta época. Apenas uma explicação: uma tempestade estava a caminho.

O Deserto da Perdição é conhecido em toda Arton por suas tempestades de areia misteriosa. Elas são como portas de passagem entre diversos mundos. Os Shariff são guardiões do conhecimento dos Sar-Allan dos ciclos destas tempestades. Através dos Pergaminhos da Verdade é possível saber quando uma tempestade vai aparecer e como usa-la como ponte entre dois mundos. O próprio pai de Fazal é o guardião supremo dos Pergaminhos da Verdade.

Ao voltar sua atenção para o oásis, Fazal percebeu um clarão estranho. De uma forma inexplicável ele sentiu um aperto em seu coração, como se pressentisse uma grande catástrofe.

Ele estava certo.

A grande pirâmide, o templo de Azgher de Al-jahara, ardia em chamas. Lá estavam guardados todos os pergaminhos da verdade. O conhecimento de gerações ardia em um brilho fulgurante que iluminava a noite como um farol. Os guerreiros Zuagires corriam com baldes de água trazidos do oásis enquanto os Shariff citadinos jogavam terra nas chamas e cavavam valas a fim de que o fogo não se espalhasse e transformasse Al-jahara em um canteiro de cinzas.

O ímpeto de ajudar no combate ao fogo estancou-se ao perceber que um homem jazia caído logo a frente da entrada da grande pirâmide. Não quis acreditar em seus olhos mas estavam corretos.

Seu pai.

Correu em desespero para acudi-lo e percebeu que o mesmo sangrava muito próximo ao abdômen. Mesmo a mascara impassível era capaz de demonstrar o profundo horror sentido por Fazal ao tomar seu pai nos braços em seus últimos instantes de vida. Apenas uma pergunta se fazia necessária naquele momento. Quem? Quem havia feito tudo aquilo? Quem teria coragem de assassinar o guardião dos Pergaminhos da Verdade e incendiá-los destruindo um dos tesouros mais valiosos dos Sar-Allan?

O filho esbravejava com o pai a perguntar em desespero: Quem? Quem? Mas como resposta apenas o silêncio. Usando sua última centelha de vida, o velho Agul puxou a cabeça de Fazal até que sua orelha encostasse-se nos lábios do velho, já esbranquiçados pela hemorragia intermitente. Em um último soluço ele balbuciou a palavra que selaria o destino de seu filho.

— Na-nazira.

Não podia acreditar. O vento, que já soprava forte, aumentava a ponto de fazer arrebentar algumas das tendas armadas para os festejos de matrimônio. Não importava mais. O ódio tomava conta do coração de Fazal. Tomado pela ira ele buscou um cavalo e pôs-se em disparada em direção ao leste. Era de lá que o vento vinha e ele sabia que era para lá que ele devia ir.

Tudo fazia sentido. Sua irmã havia planejado tudo para escapar de seu destino. Usara os pergaminhos da verdade para descobrir qual seria a próxima tempestade de areia. Ela sabia o que poderia fazer. Nós que éramos herdeiros do guardião fomos ensinados a ler as sagradas escrituras dos pergaminhos. Teria ela já planejado tudo antes de nossa conversa? Esta e muitas outras perguntas passavam pela cabeça de Fazal.

Ele avistou Nazira a um quilômetro de distância. Ela antes de lançar-se ao olho da tempestade ainda fitou uma última vez Fazal. Carregava a cimitarra de seu pai, e agora não mais parecia uma princesa delicada e sim um guerreiro do deserto. Um verdadeiro Sar-Allan. Assim se foi, sem deixar chance para que o irmão a alcançasse. Ele sabia que não adiantaria se jogar no olho da tempestade, pois poderia ser levado a um lugar completamente diferente. Sem os pergaminhos estaria condenado a nunca mais voltar.

Naquele instante Fazal jurou que vingaria o sangue de seu pai. Nem que percorresse todos os mundos de existência, encontraria Nazira para um acerto de contas. Ela deveria pagar pelos seus crimes! Pagar por ter desonrado e traído sua família. Por ter condenado seu povo a desunião. Por ter destruído o legado dos Shariff.

Por ter decidido ser livre.

Comments (3)

Início da minha série de Contos de Fantasia situada no mundo de Tormenta criado por Marcelo Cassaro, J. M. Trevisan e Rogério Saladino.

Ótima dica de leitura de um dos autores que expandiu este universo: Leonel Caldela

http://www.jamboeditora.com.br/produtos/lit-idm2.htm

Ainda vou na sessão de autógrafo dele...

Não sei de onde ele tira tanta inspiração e criatividade! Adoro os textos, os contos, até os versinhos na busca da inspiração...

Gosto da maneira envolvente que tu escreve, gosto do jeito e da narrativa...
Tudo em doses ideais para não se tornar cansativo e tedioso!

Continua escrevendo, que essa leitora aqui, já conquistastes!!!

beijos
Joana

AH! faltou dizer que mesmo sendo uma fantasia está muito proximo da realidade!

O mundo é feito de tradições e custumes... e graças a pessoas de coragem, obstinadas...as histórias de adaptam, mudam, se renovam...
Deixando a fantasia de lado e tornando em uma "realidade bem real".

Exemplos não faltam.

Tenho certeza que esse autor, ainda primário, é um deles!