Parafraseando Nietzsche

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O gosto difícil


Se me deixassem escolher livremente,
Escolheria de bom grado um pequeno lugar,
Precisamente no meio paraíso:
E, melhor ainda - diante de sua porta.


Friedrich Nietzsche

Relevância - Primeira Parte

2

     Risos em meio ao barulho do bar.

     Nestas noites quentes, no início da primavera, assim ficam os bares da cidade, lotados de boêmios em verso e prosa, a disparar suas teorias político-econômico-sociais ou simplesmente sobre o beijo de anteontem. Nenhum compromisso relevante em suma. Apenas as minúsculas bolhas de gás em ascensão no copo cristalino, agitando a mistura ideal de lúpulo, cevada e água.

    Lá estava Larissa, a falar e rir, como se vomitasse o passado para gerar alimento em seu futuro. Seus cabelos negros, pouco abaixo dos ombros e de um crespo macio, escondiam parte de seu rosto delicado e arredondado. Vinte e poucos anos de vida e já tantas coisas para se lembrar e também reclamar, fosse dos quilos que vem ganhando ou qualquer outra intempérie.

    — Por que a gente é tão boba né?— dizia Lari, passando suavemente seu dedo indicador sobre a borda do copo. Os olhos ameaçaram lágrimas — Umas palavras mais doces e logo estamos a mercê deles!

    — Típica coisa de mulher Lari. Algo meio sem escapatória. Pelo menos das primeiras vezes.

    — Não queria acreditar nisso. — O olhar da garota parecia hipnotizado por sua brincadeira, na qual molhava o dedo nas gotas de água condensadas pela diferença de temperatura entre o interior do copo e o ambiente. — Mas no meu caso acho que foi isso mesmo. Ele se aproveitou disso né?

    — Só enquanto tu deixou querida! Tu sabe disso!

    A noite seguia quente e o bar cada vez mais barulhento. Já era tarde da noite.

    ...

    “Apesar de você amanhã há de ser outro dia... Ainda pago pra ver, o jardim florescer, qual você não queria...”. Assim tocava a música que o DJ acabara de colocar em alto e bom som, fazendo as três ou quatro meninas que chegavam na pista erguer seus braços e cantarem com força. Sempre que colocava essa música Dado sabia o resultado. A galera se agitava e retomava o fôlego da festa. As pessoas que frequentavam o local eram entusiastas dos clássicos da MPB.

    Dado não era seu nome verdadeiro. Mas ele gostava de ter um “nome artístico”. Se sentia como em um personagem, apesar de seus amigos mais próximos terem certeza que quem mais aparecia no mundo era o Dado e não ele mesmo.

    Moreno e de um físico avantajado, apesar da estatura mediana, chamava bastante atenção das clientes que tumultuavam a pista, ansiosas pela próxima música. Algumas delas mais ansiosa pela atenção dele do que pela música.

    Mas estava em outro momento. Gostava muito de sua namorada Larissa, a quem todos chamavam carinhosamente de Lari. Apesar do assédio, mantinha-se tranquilo pois a garota sempre comparecia no bar onde trabalhava para lhe dar um beijo e saber se estava tudo bem. Conheceram-se na noite, e ela demorou muito a descobrir seu nome verdadeiro. Fora, há algum tempo, mais uma incauta dançarina a disparar olhares belicosos em direção ao DJ.

    Diferente das outras, estava determinada a conquistar o incongruente músico. Um dia Dado cedeu aos encantos de Lari e começaram um flerte que teria sido talvez uma bela história de amor se não tivesse começado com uma mentira.

    Dado amava outra.

    A festa seguia embalada pelos clássicos de Bebeto, Jorge Ben e outros. Muitos dos clientes que ali estavam se conheciam. O bar tinha esta característica ímpar de ser frequentado regularmente pelas mesmas pessoas. Público fiel e alegre, sempre pronto a levar a festa até os limites do raiar do dia.
O DJ já estava impaciente pois sua namorada demorava a chegar. Lari tinha por hábito sair com as amigas para bater papo, degustar destilados e fermentados pelos bares da cidade onde pudéssem conversar. Depois sempre ia dançar um pouco, dando preferência para a festa onde seu namorado estivesse fazendo seu som.

    Dado contava com essa contância de sua garota. Ela tinha hábitos demarcados e na maioria das vezes suas ações éram bastante previsíveis.

    Alguém diria talvez: Que coisa Chata! Mas ele prefiria assim. Não gostava mais de surpresas e pessoas independentes. Quando lembrava disso seu coração apertava. A sua cabeça vinha o nome dela.

    Vanessa.

    E ele não quis acreditar quando a viu passar pela porta em direção a pista.

    ...

    — Eu sei que eu sou meio boba. Acho que procuro demais refletir meus anseios de felicidade nos outros. — Disse Lari sentando-se novamente na cadeira onde estava. Acabara de voltar do banheiro. — Tô muito confusa depois disso tudo.

    — Eu já esperava que fosse dessa forma.

    — Custei a acreditar no que você me dizia. No começo achei que era algum tipo de brincadeira. Tava mesmo apaixonada por ele e sentia que ele também.

    Larissa vasculhava sua bolsa em busca de seu isqueiro. Havia comprado um cigarro avulso. Não fumava normalmente mas tinha aquele estranho hábito de fumar quando bebia. Meio como um escudo protetor contra o mundo que acharia que ela não era capaz de tomar uma decisão sozinha. No final éra apenas algo que deixaria seus cabelos com um cheiro horrível. A melhor justificativa éra que isso aconteceria de qualquer modo, fosse a fumaça dela ou a dos outros.

    Seguiam a conversa despreocupadas, apenas cuidando para que os copos não permanescessem por muito tempo vazios. Lari disparou um leve sorriso após a última tragada.

    — Acho que agora as coisas vão ser diferentes. Vou sofrer um pouco eu acho... Mas com o tempo passa né? — Fez um gesto com a cabeça buscando aprovação.

    — É claro! Melhor sofrer a dor de uma verdade do que gozar sobre uma mentira. Acho que li isso em algum livro de auto-ajuda. Ou foi na coluna da Marta Medeiros? Sei lá!

    Elas riram juntas após esta frase.