Àqueles

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Enfrentar a existência é algo nefasto,
ao mesmo tempo maravilhoso e penante.
Por mais que tenteis ser reto,
haverá sempre quem te diga em verbo completo
és tu mesquinho e não mereceis confiança doravante...

Àqueles que esperam deste a finalidade,
denota nova procedência no ato.
Que seja tão logo e se revele,
pois que desta congruência se enserre,
a Justiça dos justos de fato!

Memórias de um minuto antes do amanhecer

1

É estranho observar um aparelho de televisão ligado, com todas suas imagens intermitentes, sem poder ouvir o som respectivo. Normalmente é o que acontece nos bares da cidade em fim de noite. Cenas sem nexo em filmes de qualidade duvidosa poluem a já conturbada miscelânea visual que compõe a cena da vida boêmia. Todo o álcool ingerido já foi, provavelmente, processado pelo organismo transformando os melhores pensamentos em delírios difíceis de distinguir da realidade.


Jonas já não era mais um garoto ávido pela auto estima propiciada pela embriaguez ou pelas aventuras que deste estado volátil advinham. Havia sobrevivido a trinta e nove invernos e hoje completara seu quadragésimo. Relativamente alto para média de sua época, não tinha a aparência modelada pelos padrões fúteis da sociedade, mas para aqueles que o conheciam era tido como agradável. Alguns fios brancos insistiam em aparecer próximo as orelhas e as sobrancelhas grossas sobre seus olhos castanhos mantinham um ar severo sempre atento ao movimento a sua volta.


Erguia vez por outra os olhos em direção a porta, como criança que espera o retorno de seus pais a escola. Parecia esperar a chegada de alguém. Sim, esperava. Sua filha, Sarah garantiu que viria ao telefone. Porque mentir para um quase velho no dia de seu aniversário?


No instante seguinte, sem nenhuma hesitação, ela irrompera pela porta principal, olhar perdido, como se não quisesse estar ali, e logo percebera Jonas no canto esquerdo, cabisbaixo, sem querer olhar diretamente e, para surpresa de Sarah, havia apenas uma garrafa de água sobre a mesa.


— Boa noite Jonas.


— Boa noite filha... — disse tentando esboçar um sorriso. — Obrigado por ter vindo.
Sarah não tinha marcas do tempo eu seu rosto lânguido. Uma beleza jovial e quase lasciva se demonstrava nas curvas de seu corpo, deixando transparecer a menina que a pouco completara dezenove anos. Os castanhos, claros como mel, pouco pareciam se importar com o homem sentado a sua frente. Sua expressão era um misto de impaciência e desprezo, fazendo Jonas sentir engulhos no estômago provocado pela insegurança.


— Podes me dizer o que eu estou fazendo aqui? — Perguntou ela sem rodeios e o olhar fixo.


Mal podia olhar em seus olhos, como se anos de culpa e desespero lhe prendessem a língua impedindo a fala. Mas se conteve e respondeu.


— Eu pedi que viesse para eu me despedir... — Engoliu em seco ao perceber que a menina não esboçara nenhuma reação. — Vou fazer uma longa viajem e queria te dizer que sinto muito por tudo que fiz.


A testa franzida de Sarah demonstrava sua reação ao que ouvira. Com o rosto rubro de cólera ela torceu a expressão, a ponto de não mais ser possível observar sua rara beleza, mas apenas a cólera.


— Sente muito? — disse ela em tom alto, expelindo saliva sobre a mesa.— Você sente muito!?


— Filha eu...


— NÃO ME CHAME DE FILHA! — disse com o dedo em riste, os olhos já lacrimosos. — Você não tem o direito de me chamar assim Jonas. Você destruiu minha infância seu porco bêbado!


— Me perdoe... Eu só quero pedir desculpas antes de ir. — Tentava se erguer na cadeira, mas a postura da jovem parecia muito ameaçadora para que ele contestasse com movimentos.


Sarah parece tonta ao sentar de novo na cadeira, contorcendo o corpo e levando as mãos à cabeça, como quem protege os ouvidos com as mãos em concha. Acreditava que se não ouvisse aquilo, não precisaria responder. Não precisaria acreditar que aquele homem que fora o grande vilão de sua vida estava a sua frente em busca de perdão.
Lembrou de sua infância e toda a dor que sentira nas mãos de seu pai. A violência gratuita e sem sentido que sofrera. Por um instante parecia não ser ela naquelas lembranças. Como imagens de filmes tristes que vem a cabeça às vezes. Logo percebia que, por mais que desejasse, eram dela aquelas lembranças. Lembranças que não permitiam perdoar.


Secou o suor e as lágrimas com o punho do casaco fino vermelho que usava tentando controlar sua respiração.


— Para mim você não existe mais Jonas. Tudo que você representa para mim são dores que tento esquecer e não consigo.


—Eu preciso que me perdoe! Por favor! — Disse ele, tentando em um ato desesperado, tocar as mãos de Sarah.


— CHEGA! — Dando um berro e jogando-se para trás na cadeira. Os olhos incisivos, dominados pela ira, fulminavam o homem que implorava. — Suma daqui Jonas! Nunca te perdoarei por que para mim você não existe. É só um filme ruim que me deixou impressionada e nada mais.


— Mas...
— Nunca!


Ela afundara a cabeça entre os braços, a chorar. Como uma criança repetia diversas vezes ao homem a sua frente “Nunca!”... “Vá embora!”... Sequer percebera que ele se afastava lentamente, sem nada dizer. Apenas observando, desaparecera na penumbra do amanhecer.


Alguns segundos, e a menina percebera algo vibrando no bolso do casaco fino vermelho. Era seu telefone, que na tela exibia uma mensagem de número desconhecido. Atendeu de pronto:


—Alô?


— Alô! É a senhora Sarah Costa?


— Sim... quem fala?


— Senhora Sarah, aqui o oficial de polícia Medeiros. Estou ligando, pois encontramos o corpo de um homem morto esta madrugada. Chamava-se Jonas Costa e deixou uma carta endereçada à senhora!


Ela engoliu em seco e o telefone escorregara de sua mão sem que percebesse. Os primeiros raios de sol inundaram o bar onde estava. O dia nascera mais uma vez.

Libero Discorso

2

Apesar do que muitos afirmam, viver pode ser uma arte muito simples, desde que possamos dar a esta vida um significado. Significado este que pode estar contido em nosso discurso, na forma de nos expressarmos no cotidiano. É fácil perceber nas pessoas que lhes falta significado em suas palavras, que acabam soltas ao vento sem muito dizer e pouco de útil a acrescentar. Como pode ter sentido minhas idéias se não as conseguir expressar?

É por isso que hoje quero lhes falar do significado de uma palavra, que fora proferida a mim, e a alguns dos colegas que aqui estão, em nosso primeiro dia de graduação, por um dos grandes mestres desta instituição.
A palavra é Descobrir.

Palavra simples, de apenas 3 sílabas , 6 consoantes, 2 vogais e talvez todo o sentido de nossa busca eterna pela verdade enquanto humanidade.
Descobrir pode significar simplesmente tirar a cobertura de algo que está coberto, que está encoberto. Desvendar, tirar a venda que cega o homem da verdade. Desvelar, retirando o fino véu que turva a visão de nossa verdadeira condição humana.
Durante séculos aprimoramos nossa ciência, desenvolvemos as mais fantásticas teorias e até ignoramos as crenças em busca de nossas respostas. Mas parece que hoje em dia, o véu tornou-se mais espesso, a venda mais pesada e grande parte de tudo que conhecemos cobre-se de alguma forma. Estamos cada vez mais longe da verdade, nos contentando com o resumo da notícia, com parcas percepções e análises irrisórias. Não nos preocupamos mais em nos aprofundar no esclarecimento, em conhecer, em descobrir...

Ao iniciar uma graduação todos tem suas aspirações individuais e seus sonhos, mas creio que os alunos sequer têm para si a dimensão e a importância daquilo que estão fazendo. Da importância coletiva, social, humana deste processo.
Eu, pelo menos, não tinha.
Sabe-se apenas que, como muitos vêm a nós e exclamam, fazemos parte de uma minoria privilegiada. Porém o que isso realmente significa, talvez só agora estejamos aptos a entender. Descobrimos enfim o significado desta grande empreitada.
Em uma sociedade onde ainda prevalece a força do capital em detrimento ao bem estar das pessoas e que pouquíssimos tem acesso a educação de qualidade, é preciso criar novas formas de organizar-se social e economicamente. Neste cenário cresce nossa responsabilidade enquanto profissionais preparados para gerir pessoas. Para entender e atender suas necessidades.
É certo que, como nos ensinaram os 28 tecelões de Rochdale, basta que um homem apresente uma idéia nova, que imediatamente dez homens aparecerão para esmagar o audaz inovador, nem sempre com a convicção de que a idéia nova é má, mas pela simples razão de que a ordem das coisas existentes não deve ser perturbada. Estes operários ingleses, pioneiros na descoberta de uma nova forma de organização social, provaram ao mundo serem capazes de mudar suas realidades. Descobriram o significado de sua história.

Por isso, caros colegas, convido-os, agora de posse do ferramental necessário, a fazermos parte de um grupo realmente engajado na empreitada de descobrir. Um grupo que não se contentará apenas com o resumo da notícia ou simplesmente servir de massa de manobra aos interesses de poucos, os mesmos que se escondem atrás do véu espesso que a pouco citei.
Façamos com que esta conquista que hoje, aqui celebramos, seja um aviso ao mundo, que em breve receberá de nós todo o empenho em melhorá-lo a cada dia. Em cada atitude e decisão que tomarmos. Em cada descoberta que pudermos fazer e que possa melhorar a vida de nossos pares.
Que aqueles que hoje nos assistem nesta da platéia, com olhos marejados de emoção, orgulhosos de nossa conquista, possam acreditar que todo o empenho que tiveram em nos ajudar nesta empreitada será recompensado pelas façanhas que realizaremos para o mundo. Façanhas talvez pequenas, mas de grande importância para aqueles aos quais dela se aproveitarão.
Acredito que seja este o grande significado de tudo isto que estamos vivendo, desta jornada que hoje parece se encerrar em glória, mas é apenas um prenúncio do que está por vir.
Encerro afirmando que foi um prazer ter convivido com todas as suas singularidades durante estes anos, caros colegas, aprendendo e descobrindo, juntos, formas de questionar o conhecimento que nos fora apresentado e de pensar aquilo que ainda não fora pensado. Aos mestres o agradecimento e ao mundo uma certeza:
Iremos fazer dele um lugar melhor.

Obrigado.