Mariana

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Todos os dias pareciam repetições de uma mesma rotina cruel.

La estava Rafael, em sua jornada diária de estudos infindáveis na biblioteca pública do lugarejo. Havia, ainda nos primeiros meses daquele ano, se inscrito no vestibular da Universidade Federal. A família estava orgulhosa. Enfim o jovem desregrado havia decidido seu rumo na vida. Seria um competente e promissor engenheiro.

Dedicava em média duas horas de seu dia para estudar sozinho na biblioteca. Tinha estatura baixa para a média masculina de sua cidade, com cabelos volumosos e encaracolados, mas sem se demonstrar displicente. Tinha nos olhos aquela expressão de “serei um dia vencedor”. Pelo menos assim se inflamava sua madrinha ao descrevê-lo.

Sua rotina chamava atenção do pacato Adolfo, o bibliotecário. Em meio as suas quarenta primaveras de vida, não havia conhecido jovem de tamanha determinação como a de Rafael. Sempre que podia indicava boas leituras ao rapaz que agradecia com bastante educação. Não se pode dizer que houvesse ali uma amizade, mas um sentimento de respeito mútuo.

Faltando menos de dois meses para a prova, o jovem estudante já se sentia saturado de toda aquela pilha de conhecimentos que necessitava acumular. Sentia-se como um capacitor de energia, exacerbando sua potência até o limite para uma única descarga fulminante. Estava tentando vaga para o curso de engenharia elétrica. Suas metáforas acabavam sempre rondando algo relacionado.

Foi em um dia destes em que ele queria estar em todos os lugares do mundo, menos na biblioteca, que ela apareceu. Linda. Não muito alta, mas o suficiente para impressionar. Cabelos levemente ondulados e curtos, até o início do pescoço. Os olhos de um castanho tão claro que poderia refletir seus pensamentos. Não estava estudando com certeza, pois trazia consigo um livro pequeno, que a distância parecia um romance. Provavelmente buscava um lugar tranqüilo para se ater a sua leitura.

Rafael esquecera o motivo pelo qual tinha vindo aquele lugar e apenas admirava aquela visão. Desde o leve folhear das páginas do livro, até a forma como trazia delicadamente sua franja até a parte posterior da orelha.
Aquela cena se repetira durante todos os dias daquela semana. Mais ou menos no mesmo horário ela aparecia e sempre desviava o interesse de Rafael de seus estudos. Às vezes ele chegava a suspirar quando a moça deixava a sala. Tamanho interesse não poderia passar despercebido.

— Seu nome é Mariana. — Disse de pronto o bibliotecário, soltando um livro sobre a mesa como se disfarçasse sua aproximação. — Mas ela não tem a sua idade garoto!

O estudante fora pego de surpresa com a aproximação de Adolfo. Não percebera que sua admiração pela moça estivera tão declarada a ponto de provocar uma manifestação de um homem que trocara tão poucas palavras.

— Não sei do que está falando! — retrucou Rafael, tentando retomar sua leitura sem sequer saber mais qual livro estudava antes de ter se distraído.

— Não se preocupe garoto. Foi apenas um comentário.

Adolfo se inclinava mais próximo do jovem com um sorriso dúbio em seu rosto. Parecia querer contar um segredo obscuro. Estivera atento a toda comoção do jovem ao observar a garota.

— Realmente ela é maravilhosa. Deveria ir até ela conversar. Não tens nada a perder.

O bibliotecário se afastou da mesa de estudos sem obter resposta para sua afirmativa. O olhar de Rafael estava parado no vazio. Certamente pensava sobre as palavras que ouvira, mesmo sem entender o que se passara naquelas tardes em que perdera o foco em seus estudos para observar Mariana. Observação falha esta, pois ele nunca percebera que sempre antes de ir embora a jovem se dirigia até Adolfo para se despedir. Ele apenas sonhava todas as coisas que queria dizer a ela.

Mais alguns dias se passaram e ele percebeu que o bibliotecário conhecia bem a moça. Sempre conversavam quando chegava e ela sempre se despedia carinhosa com o mesmo. Devia ter seus vinte e cinco anos, mas seu rostinho de menina seria capaz de enganar o mais sagaz dos malandros. Devem ser amigos, pensava Rafael. Principalmente por que os incentivos de Adolfo para um contato com ela se tornaram diários. Ele sempre tinha uma idéia boa de como o estudante poderia conhecê-la. Rafael disfarçava e desconversava, pois era reservado demais para comentar com um quase estranho algo sobre a mulher que fazia seu coração disparar.

Semanas antes do vestibular ele tomara coragem e escrevera um bilhete. Encerrou mais cedo seus estudos e ao passar pela mesa onde Mariana estava absorta em sua leitura, fez repousar o bilhete logo a frente dela, sem que a mesma percebesse. Convidava ela para um inocente passeio no parque naquela tarde. Le estaria esperando em frente à biblioteca do outro lado da rua.

Ele esperou durante minutos intermináveis. Dez, talvez vinte, se é que não fora uma hora. Rafael esquecera tudo quando ela desceu as escadarias da biblioteca. Realmente linda e estava especial naquele dia com um vestido branco leve que lhe caía dos ombros pendurado em delicadas alças de renda. Não se controlou e ergueu o braço direito em um aceno tímido. Seu coração disparou ao ver que Mariana sorria e caminhava agora em sua direção.

Foi uma inesquecível tarde de verão.

Naquela noite Adolfo chegara um pouco mais tarde em casa. Havia participado de uma reunião de condomínio e estava cansado. Sua jovem esposa já se encontrava adormecida. Ele aproximou-se e a beijou levemente, trazendo-a de volta do mundo dos sonhos.

— Não percebi a hora que saíste da biblioteca hoje Mari. Onde foi? — Perguntou o bibliotecário com uma voz acalentadora.

— Voltei pra casa mais cedo para fazer o bolo de fubá que você adora meu amor. — Disse a jovem se espreguiçando. — Não sente o cheiro?

— Sinto sim meu anjo. — Esboçou um leve sorriso. — Comerei pela manhã.

Ele se aconchegou junto dela na cama buscando fazê-la adormecer novamente em seu peito. Estava se sentindo feliz, pois havia testado a confiança de sua esposa e a mesma sequer havia se abalado pelo flerte de outro homem. Sentia-se amado e jovem novamente.

Realmente ele era um homem de sorte, assim pensava.

Espaço vazio

3

A pouco luz da tela,
que fere os olhos como um cinzel de aço,
pulsa a cada instante,
ávida da criativa explosão germinante...
das coisa que penso e não faço.

O que separa a dádiva
que molda a idéia e a faz clarão?
ilumina a tácita não sapiência
pois tenta o homem auferir ciência,
ao caótico universo em vão.

Desisto desta sinuosa rima
em prol do sono que vem tardio.
Pois na noite o poeta se encerra,
e do escuro lúgubre o poema desenterra...
para nada, além do que, um momento vazio.

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