Memórias de um minuto antes do amanhecer

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É estranho observar um aparelho de televisão ligado, com todas suas imagens intermitentes, sem poder ouvir o som respectivo. Normalmente é o que acontece nos bares da cidade em fim de noite. Cenas sem nexo em filmes de qualidade duvidosa poluem a já conturbada miscelânea visual que compõe a cena da vida boêmia. Todo o álcool ingerido já foi, provavelmente, processado pelo organismo transformando os melhores pensamentos em delírios difíceis de distinguir da realidade.


Jonas já não era mais um garoto ávido pela auto estima propiciada pela embriaguez ou pelas aventuras que deste estado volátil advinham. Havia sobrevivido a trinta e nove invernos e hoje completara seu quadragésimo. Relativamente alto para média de sua época, não tinha a aparência modelada pelos padrões fúteis da sociedade, mas para aqueles que o conheciam era tido como agradável. Alguns fios brancos insistiam em aparecer próximo as orelhas e as sobrancelhas grossas sobre seus olhos castanhos mantinham um ar severo sempre atento ao movimento a sua volta.


Erguia vez por outra os olhos em direção a porta, como criança que espera o retorno de seus pais a escola. Parecia esperar a chegada de alguém. Sim, esperava. Sua filha, Sarah garantiu que viria ao telefone. Porque mentir para um quase velho no dia de seu aniversário?


No instante seguinte, sem nenhuma hesitação, ela irrompera pela porta principal, olhar perdido, como se não quisesse estar ali, e logo percebera Jonas no canto esquerdo, cabisbaixo, sem querer olhar diretamente e, para surpresa de Sarah, havia apenas uma garrafa de água sobre a mesa.


— Boa noite Jonas.


— Boa noite filha... — disse tentando esboçar um sorriso. — Obrigado por ter vindo.
Sarah não tinha marcas do tempo eu seu rosto lânguido. Uma beleza jovial e quase lasciva se demonstrava nas curvas de seu corpo, deixando transparecer a menina que a pouco completara dezenove anos. Os castanhos, claros como mel, pouco pareciam se importar com o homem sentado a sua frente. Sua expressão era um misto de impaciência e desprezo, fazendo Jonas sentir engulhos no estômago provocado pela insegurança.


— Podes me dizer o que eu estou fazendo aqui? — Perguntou ela sem rodeios e o olhar fixo.


Mal podia olhar em seus olhos, como se anos de culpa e desespero lhe prendessem a língua impedindo a fala. Mas se conteve e respondeu.


— Eu pedi que viesse para eu me despedir... — Engoliu em seco ao perceber que a menina não esboçara nenhuma reação. — Vou fazer uma longa viajem e queria te dizer que sinto muito por tudo que fiz.


A testa franzida de Sarah demonstrava sua reação ao que ouvira. Com o rosto rubro de cólera ela torceu a expressão, a ponto de não mais ser possível observar sua rara beleza, mas apenas a cólera.


— Sente muito? — disse ela em tom alto, expelindo saliva sobre a mesa.— Você sente muito!?


— Filha eu...


— NÃO ME CHAME DE FILHA! — disse com o dedo em riste, os olhos já lacrimosos. — Você não tem o direito de me chamar assim Jonas. Você destruiu minha infância seu porco bêbado!


— Me perdoe... Eu só quero pedir desculpas antes de ir. — Tentava se erguer na cadeira, mas a postura da jovem parecia muito ameaçadora para que ele contestasse com movimentos.


Sarah parece tonta ao sentar de novo na cadeira, contorcendo o corpo e levando as mãos à cabeça, como quem protege os ouvidos com as mãos em concha. Acreditava que se não ouvisse aquilo, não precisaria responder. Não precisaria acreditar que aquele homem que fora o grande vilão de sua vida estava a sua frente em busca de perdão.
Lembrou de sua infância e toda a dor que sentira nas mãos de seu pai. A violência gratuita e sem sentido que sofrera. Por um instante parecia não ser ela naquelas lembranças. Como imagens de filmes tristes que vem a cabeça às vezes. Logo percebia que, por mais que desejasse, eram dela aquelas lembranças. Lembranças que não permitiam perdoar.


Secou o suor e as lágrimas com o punho do casaco fino vermelho que usava tentando controlar sua respiração.


— Para mim você não existe mais Jonas. Tudo que você representa para mim são dores que tento esquecer e não consigo.


—Eu preciso que me perdoe! Por favor! — Disse ele, tentando em um ato desesperado, tocar as mãos de Sarah.


— CHEGA! — Dando um berro e jogando-se para trás na cadeira. Os olhos incisivos, dominados pela ira, fulminavam o homem que implorava. — Suma daqui Jonas! Nunca te perdoarei por que para mim você não existe. É só um filme ruim que me deixou impressionada e nada mais.


— Mas...
— Nunca!


Ela afundara a cabeça entre os braços, a chorar. Como uma criança repetia diversas vezes ao homem a sua frente “Nunca!”... “Vá embora!”... Sequer percebera que ele se afastava lentamente, sem nada dizer. Apenas observando, desaparecera na penumbra do amanhecer.


Alguns segundos, e a menina percebera algo vibrando no bolso do casaco fino vermelho. Era seu telefone, que na tela exibia uma mensagem de número desconhecido. Atendeu de pronto:


—Alô?


— Alô! É a senhora Sarah Costa?


— Sim... quem fala?


— Senhora Sarah, aqui o oficial de polícia Medeiros. Estou ligando, pois encontramos o corpo de um homem morto esta madrugada. Chamava-se Jonas Costa e deixou uma carta endereçada à senhora!


Ela engoliu em seco e o telefone escorregara de sua mão sem que percebesse. Os primeiros raios de sol inundaram o bar onde estava. O dia nascera mais uma vez.