Contos de Fantasia | A quebra

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Alegria. Todos cantavam e dançavam ao cair da tarde em uma euforia contagiante. Os últimos raios de sol no oásis brindavam a todos com um céu de rico colorido e rara beleza. Refinadas odaliscas, trazidas pelo príncipe do norte, contorciam-se sinuosas ao som grave e contínuo da cítara, exibindo toda voluptuosidade de seus corpos morenos. O cheiro de boa comida se espalhava por todo o lugar, carregado pela brisa leve, pois a muito as tempestades do deserto haviam se acalmado.

O oásis de Al-jahara, ao sul do Deserto da Perdição sempre fora um lugar tranqüilo e bucólico. Lar de uma das poucas tribos sedentárias desta região de Arton servia de entreposto para todas as comitivas vindas do norte que tencionavam atravessar a Grande Savana. Hoje Al-jahara se enfeitou de flores para comemorar o que talvez fosse o maior acontecimento desse povo. O casamento entre Nazira, filha de Agul Aian Barak e o príncipe dos Zuagires do Norte. Esta união simbolizava a reunião de todas as tribos Sar-Allan, desde os Shariff, habitantes do oásis e guardiões dos pergaminhos da verdade, até os guerreiros Zuagires, formando assim um só povo do deserto.

Muitas mucamas corriam e se ouriçavam em torno da tenda onde era preparada a jovem Nazira para seu matrimônio. Enquanto os guerreiros do norte se banqueteavam com a farta comida e admiravam as belas odaliscas em sua dança hipnótica, a noiva era preparada para que estivesse esplendorosa. Segundo a tradição dos Sar-Allan o ritual aconteceria ao amanhecer, quando Azgher,o Deus Sol, derrama sobre o deserto seus primeiros raios renovadores. A balburdia das serviçais só foi interrompida com a aproximação de um homem, que caminhava diretamente para a tenda. Apesar da surpresa, todas logo voltaram a seus afazeres ao perceber que aquele que se aproximava era o irmão da noiva, o jovem Fazal.

Apesar de sua pouca idade, apenas vinte e uma primaveras, o filho de Agul se tornara um bravo guerreiro e fiel defensor da fé em seu Deus. Como todos os paladinos de Azgher, ele mantinha seu rosto oculto por uma máscara desde os nove anos, idade em que fora aceito na ordem. Era forte, mas não muito alto e estava feliz de poder ver seu povo em paz, pronto para sorrir e festejar esta união. Viera até a tenda de sua irmã para lhe dar conselhos, pois queria que Nazira se apresentasse como uma boa esposa. Ela seria a sétima esposa do príncipe do norte e segundo a tradição dos Sar-Allan, a sétima esposa representa a boa ventura e a prosperidade de um senhor.

O que Fazal não sabia é que sua irmã estava longe de aceitar esta tradição.

— Nazira! — exclama o guerreiro sagrado ao adentrar a tenda. — Vim ver como estás minha irmã. Seu noivo está ansioso para que Azgher nos devolva a dádiva do dia e ele então possa vê-la.

A bela menina de olhos castanhos, claros como o doce mel, ergueu levemente a cabeça para contemplar seu irmão. Tinha duas mucamas que mexiam incessantemente em seu cabelo castanho e muito liso, como se quisessem arrancá-lo e refazê-lo ao seu bel prazer, enquanto uma outra massageava seus delicados pés em uma tina de água morna. Lançou um olhar que o mais bruto de todos os guerreiros perceberia ser de melancolia, soluçando uma resposta em tom muito baixo.

— Bem.

Fazal sem perceber a carga emocional depositada naquela palavra prosseguiu.

— Pois saiba que vim ter contigo minha irmã, falar-te que é desejo de nosso pai que sejas a melhor das esposas para o seu futuro marido; — ele caminhava pela tenda e continuava a falar. — isso é muito importante para nosso povo e bem sabes que o senhor dos Zuagires tem, entre suas esposas, até princesas de terras longínquas.

Nazira de súbito bate palmas e pede para as mucamas que saiam rapidamente. Esta atitude interrompe o discurso do jovem guerreiro que fica surpreso ao voltar-se para sua irmã e perceber um olhar cruel e cheio de amargura.

— O que dizes meu irmão? Por que fazem isso comigo? Que tradição maldita é esta que nosso pai me obriga a cumprir?

— Não entendo minha irmã? Por que tens tamanha dor em suas palavras e as profere de forma tão afrontosa? — disse Fazal de súbito sem realmente entender tamanha dor naquelas palavras.

— Eu estou cansada. — Nazira dá de ombros e as primeiras lágrimas caem. —Estou cansada de nosso povo! Desta tradição maldita que me humilha apenas por ter nascido com um ventre ao invés de uma espada entre as pernas. Desprezam-me por acreditar que tenho apenas uma finalidade, a de servi-los.

Fazal ainda surpreso com a reação da irmã tenta elevar seu tom de voz para rechaçar a insurreição de sua irmã através da intimidação.

— Não blasfeme Nazira! O que dizes não tem fundamento. Deves...

— Estou cansada que me digam o que tenho que fazer! — ela interrompe seu irmão em um tom mais alto de voz e aos pouco vai se aproximando dele. — Quem é nosso pai para pensar que tem direito de me vender para um homem que sequer conheço. Para ser sua sétima esposa! Sétima? Nosso pai só pensa no benefício político disso tudo! Eu o odeio!

O guerreiro de Azgher golpeia a face da jovem noiva com a mão aberta, interrompendo seu agressivo discurso e fazendo com que a mesma leve suas mãos ao rosto. O barulho da festa fora da tenda não é capaz de interromper o olhar dos irmãos que durante segundos intermináveis duelam seus sentimentos que transbordam de suas almas.

— Isto é um delírio minha irmã. A sombra de Tênebra já invadiu nosso mundo e provoca devaneios em sua cabeça. Prossiga com os preparativos e reze para que Azgher ilumine teus pensamentos e afaste a sombra da loucura. — e assim dizendo, Fazal deu as costas a sua irmã e saiu apressado da tenda deixando sua irmã só com seus pensamentos.

A dor do golpe de seu irmão alimentava ainda mais o ódio de Nazira. Ela não acreditava naquela tradição. Odiava seu pai e agora também seu irmão, por não entende-la. Estava cada vez mais certa de seu destino. Não iria cumprir aquela sentença. Iria para um lugar onde jamais lhe perseguiriam.

* * *

Fazal se afastara da festa, absorto em seus pensamentos. Os acontecimentos lhe deixavam confuso e aquela noite parecia mais fria que de costume. Os servos de Azgher não costumam se sentir bem durante a noite, pois é nesse momento que Tênebra espreita o povo protegido daquele que tudo vê. Muitas idéias passavam pela sua mente como um redemoinho incessante que nunca revela seu centro.

Por que sua irmã pensava desta forma?

Esta era a pergunta que mais se repetia em seus devaneios. Embora fosse jovem, não se lembrava de nenhuma mulher da aldeia que tenha desobedecido a sua família e questionado seu casamento. Uma tradição que fora passada de pai para filho, geração a geração, por centenas de anos e nunca antes negada. Era tão simples, era o certo a ser feito.

Fazal, se sentindo confuso, rezou para que Azgher lhe iluminasse, e ele pudesse entender a revolta de sua irmã. Não queria odiá-la, pois era seu sangue. Ela ofendera seu pai e deveria ser punida por isso, mas não queria no fundo odiá-la. Percebeu, por um instante, que algo mudava a sua volta. O vento estava aumentando sua velocidade. Muito rápido para esta época. Apenas uma explicação: uma tempestade estava a caminho.

O Deserto da Perdição é conhecido em toda Arton por suas tempestades de areia misteriosa. Elas são como portas de passagem entre diversos mundos. Os Shariff são guardiões do conhecimento dos Sar-Allan dos ciclos destas tempestades. Através dos Pergaminhos da Verdade é possível saber quando uma tempestade vai aparecer e como usa-la como ponte entre dois mundos. O próprio pai de Fazal é o guardião supremo dos Pergaminhos da Verdade.

Ao voltar sua atenção para o oásis, Fazal percebeu um clarão estranho. De uma forma inexplicável ele sentiu um aperto em seu coração, como se pressentisse uma grande catástrofe.

Ele estava certo.

A grande pirâmide, o templo de Azgher de Al-jahara, ardia em chamas. Lá estavam guardados todos os pergaminhos da verdade. O conhecimento de gerações ardia em um brilho fulgurante que iluminava a noite como um farol. Os guerreiros Zuagires corriam com baldes de água trazidos do oásis enquanto os Shariff citadinos jogavam terra nas chamas e cavavam valas a fim de que o fogo não se espalhasse e transformasse Al-jahara em um canteiro de cinzas.

O ímpeto de ajudar no combate ao fogo estancou-se ao perceber que um homem jazia caído logo a frente da entrada da grande pirâmide. Não quis acreditar em seus olhos mas estavam corretos.

Seu pai.

Correu em desespero para acudi-lo e percebeu que o mesmo sangrava muito próximo ao abdômen. Mesmo a mascara impassível era capaz de demonstrar o profundo horror sentido por Fazal ao tomar seu pai nos braços em seus últimos instantes de vida. Apenas uma pergunta se fazia necessária naquele momento. Quem? Quem havia feito tudo aquilo? Quem teria coragem de assassinar o guardião dos Pergaminhos da Verdade e incendiá-los destruindo um dos tesouros mais valiosos dos Sar-Allan?

O filho esbravejava com o pai a perguntar em desespero: Quem? Quem? Mas como resposta apenas o silêncio. Usando sua última centelha de vida, o velho Agul puxou a cabeça de Fazal até que sua orelha encostasse-se nos lábios do velho, já esbranquiçados pela hemorragia intermitente. Em um último soluço ele balbuciou a palavra que selaria o destino de seu filho.

— Na-nazira.

Não podia acreditar. O vento, que já soprava forte, aumentava a ponto de fazer arrebentar algumas das tendas armadas para os festejos de matrimônio. Não importava mais. O ódio tomava conta do coração de Fazal. Tomado pela ira ele buscou um cavalo e pôs-se em disparada em direção ao leste. Era de lá que o vento vinha e ele sabia que era para lá que ele devia ir.

Tudo fazia sentido. Sua irmã havia planejado tudo para escapar de seu destino. Usara os pergaminhos da verdade para descobrir qual seria a próxima tempestade de areia. Ela sabia o que poderia fazer. Nós que éramos herdeiros do guardião fomos ensinados a ler as sagradas escrituras dos pergaminhos. Teria ela já planejado tudo antes de nossa conversa? Esta e muitas outras perguntas passavam pela cabeça de Fazal.

Ele avistou Nazira a um quilômetro de distância. Ela antes de lançar-se ao olho da tempestade ainda fitou uma última vez Fazal. Carregava a cimitarra de seu pai, e agora não mais parecia uma princesa delicada e sim um guerreiro do deserto. Um verdadeiro Sar-Allan. Assim se foi, sem deixar chance para que o irmão a alcançasse. Ele sabia que não adiantaria se jogar no olho da tempestade, pois poderia ser levado a um lugar completamente diferente. Sem os pergaminhos estaria condenado a nunca mais voltar.

Naquele instante Fazal jurou que vingaria o sangue de seu pai. Nem que percorresse todos os mundos de existência, encontraria Nazira para um acerto de contas. Ela deveria pagar pelos seus crimes! Pagar por ter desonrado e traído sua família. Por ter condenado seu povo a desunião. Por ter destruído o legado dos Shariff.

Por ter decidido ser livre.

Relevância | Segunda Parte

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As pessoas na pista estranharam quando a música terminou e nenhuma outra começou em sequência Dado havia se atrapalhado. Acontecia as vezes, mas o problema foi ter visto ela.

Sua garganta secou e seu coração disparou em frenesi. Não estava preparado para aquilo. Para aquela a quem fez juras de amor e prometeu se casar e ter filhos. Para rever seu pasado bem diante de seus olhos.

Vanessa éra independente, ponderada e madura. Uma mulher a frente de seu tempo e certa de seus objetivos. Seu cabelo curto e crespo emolduravam seu rosto claro enfeitado por olhos castanhos amendoados.

Muito antes de se tornar o senhor da noite, Dado fora seu primeiro namorado e ela tinha um sentimento muito especial por ele. Ficaram juntos por quase cinco anos até que um dia ela decidiu ir embora. Um dia resolveu desistir do garoto que segundo ela insistia em não se tornar homem. Ele já não servia mais para ela.

O DJ vasculhou em suas músicas aquela que lembrava a que sua amada mais gostava. O mundo deixou de existir desde que ela passara pela porta. Éra um forró de Alceu Valença. Ele ajeitou seu equipamento no automático e foi até ela. Não se preucupava com mais nada.

— Veio me ver? — Disse Dado chegando próximo e fazendo um gesto com a mão, o qual ela entendia ser um convite para dançar.

— Vim curtir boa música. — Vanessa com um sorriso leve nos lábios envolvía-se nos braços dele tranquilamente, marcando os primeiros passos da dança.

“Eu quero ver você dizer que eu sou ruim... Eu quero ver quem vai te dar amor assim...”. Seguia a música de Alceu e os dois em um compasso cadenciado a fazer voltas e sem dizer uma palavra sequer. Ele sorria discreto mas sinceramente. O calor daquela mulher lhe acalentava como nenhuma outra. Encostou sua cabeça na dela e estava pronto para beijá-la. Não sabia se ela queria, mas não fora repelido no intento. O mundo poderia acabar naquele instante.

E acabou.

Dado sentiu um puchão violento e seus braços e entre os brilhos multicolores das luminárias da pista, pode notar os olhos marejados de Larissa e sua expressão de descrença.

— Por que isso Dado! — Disse ela mais alto que o som grave da zabumba — Eu não consigo te entender.... o que te falta?

— Lari...eu.... — Pego de surpresa e chocado com o soluçar de menina, dizia ele aos tropeços.

E sem dizer mais nada a namorada deu as costas para o DJ. Ele podê ouví-la soluçando mesmo em meio a todo o barulho. Voltou seu olhar para Vanessa.

Ela estava estática olhando para ele. Uma expressão que talvez misturasse asco e repúdio a um sentimento de pena. Seu olhar fulminou o coração confuso do jovem que agora não sabia mais a razão de ter nascido, mas parecia ter mil motivos para querer não estar vivo naquele momento.

— Um dia tu vais pensar nos outros e não só em ti!

Vanessa sentenciara a atitude de Dado nesta frase. Deu as costas para ele antes que pudesse ser retrucada e seguiu para a saída. Sequer olhou para trás.

Ele ficou lá. Estático.

Não conseguia conceber exatamente o que havia acontecido. Mas sabia muito bem o que perdera. O quanto perdera.

E novamente, a música parou.

...

O burburinho diminuia e o bar começava a esvaziar.

Larissa já pedia a conta pois o céu despíasse de seu manto negro e vestia sua camisola azul anil, para tentar adormecer o sono dos boêmios. Dando último gole, ela pôs a arrumar a bolsa.

— Bom, acho que hoje nós esgotamos a conversa e eu as lágrimas. O dia foi muito complexo pra minha cabeça. — Esboçou um leve sorriso. — Mas valeu pelo aprendizado.

— Eu sei que foi sofrido, mas foi uma dor que com o tempo tu vai perceber que sumirá. Agora tu tá livre de mentiras. — Disse a garota balançando seus cachos crespos.

— Espero que sim Vanessa. Ainda não sei o que pensar, mas sei melhor o que quero da vida. —Disse levantando-se. — Dado vai se tornar passado na minha vida como é na tua.

— Tudo bem Lari. Eu só quis desfazer uma mentira.

E seguiram cada uma para um lado ao sair do bar.

Vanessa tinha um leve sorriso em meio ao silêncio do amanhecer.

Quadra em 5 versos (ou A Espera.)

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Tendo dito o que se tem,
a esta inspiração que não vem;
Volto e lhe escrevo uma quadrinha
para que não te sintas sozinha
a espera de alguém!

Àqueles

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Enfrentar a existência é algo nefasto,
ao mesmo tempo maravilhoso e penante.
Por mais que tenteis ser reto,
haverá sempre quem te diga em verbo completo
és tu mesquinho e não mereceis confiança doravante...

Àqueles que esperam deste a finalidade,
denota nova procedência no ato.
Que seja tão logo e se revele,
pois que desta congruência se enserre,
a Justiça dos justos de fato!

Memórias de um minuto antes do amanhecer

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É estranho observar um aparelho de televisão ligado, com todas suas imagens intermitentes, sem poder ouvir o som respectivo. Normalmente é o que acontece nos bares da cidade em fim de noite. Cenas sem nexo em filmes de qualidade duvidosa poluem a já conturbada miscelânea visual que compõe a cena da vida boêmia. Todo o álcool ingerido já foi, provavelmente, processado pelo organismo transformando os melhores pensamentos em delírios difíceis de distinguir da realidade.


Jonas já não era mais um garoto ávido pela auto estima propiciada pela embriaguez ou pelas aventuras que deste estado volátil advinham. Havia sobrevivido a trinta e nove invernos e hoje completara seu quadragésimo. Relativamente alto para média de sua época, não tinha a aparência modelada pelos padrões fúteis da sociedade, mas para aqueles que o conheciam era tido como agradável. Alguns fios brancos insistiam em aparecer próximo as orelhas e as sobrancelhas grossas sobre seus olhos castanhos mantinham um ar severo sempre atento ao movimento a sua volta.


Erguia vez por outra os olhos em direção a porta, como criança que espera o retorno de seus pais a escola. Parecia esperar a chegada de alguém. Sim, esperava. Sua filha, Sarah garantiu que viria ao telefone. Porque mentir para um quase velho no dia de seu aniversário?


No instante seguinte, sem nenhuma hesitação, ela irrompera pela porta principal, olhar perdido, como se não quisesse estar ali, e logo percebera Jonas no canto esquerdo, cabisbaixo, sem querer olhar diretamente e, para surpresa de Sarah, havia apenas uma garrafa de água sobre a mesa.


— Boa noite Jonas.


— Boa noite filha... — disse tentando esboçar um sorriso. — Obrigado por ter vindo.
Sarah não tinha marcas do tempo eu seu rosto lânguido. Uma beleza jovial e quase lasciva se demonstrava nas curvas de seu corpo, deixando transparecer a menina que a pouco completara dezenove anos. Os castanhos, claros como mel, pouco pareciam se importar com o homem sentado a sua frente. Sua expressão era um misto de impaciência e desprezo, fazendo Jonas sentir engulhos no estômago provocado pela insegurança.


— Podes me dizer o que eu estou fazendo aqui? — Perguntou ela sem rodeios e o olhar fixo.


Mal podia olhar em seus olhos, como se anos de culpa e desespero lhe prendessem a língua impedindo a fala. Mas se conteve e respondeu.


— Eu pedi que viesse para eu me despedir... — Engoliu em seco ao perceber que a menina não esboçara nenhuma reação. — Vou fazer uma longa viajem e queria te dizer que sinto muito por tudo que fiz.


A testa franzida de Sarah demonstrava sua reação ao que ouvira. Com o rosto rubro de cólera ela torceu a expressão, a ponto de não mais ser possível observar sua rara beleza, mas apenas a cólera.


— Sente muito? — disse ela em tom alto, expelindo saliva sobre a mesa.— Você sente muito!?


— Filha eu...


— NÃO ME CHAME DE FILHA! — disse com o dedo em riste, os olhos já lacrimosos. — Você não tem o direito de me chamar assim Jonas. Você destruiu minha infância seu porco bêbado!


— Me perdoe... Eu só quero pedir desculpas antes de ir. — Tentava se erguer na cadeira, mas a postura da jovem parecia muito ameaçadora para que ele contestasse com movimentos.


Sarah parece tonta ao sentar de novo na cadeira, contorcendo o corpo e levando as mãos à cabeça, como quem protege os ouvidos com as mãos em concha. Acreditava que se não ouvisse aquilo, não precisaria responder. Não precisaria acreditar que aquele homem que fora o grande vilão de sua vida estava a sua frente em busca de perdão.
Lembrou de sua infância e toda a dor que sentira nas mãos de seu pai. A violência gratuita e sem sentido que sofrera. Por um instante parecia não ser ela naquelas lembranças. Como imagens de filmes tristes que vem a cabeça às vezes. Logo percebia que, por mais que desejasse, eram dela aquelas lembranças. Lembranças que não permitiam perdoar.


Secou o suor e as lágrimas com o punho do casaco fino vermelho que usava tentando controlar sua respiração.


— Para mim você não existe mais Jonas. Tudo que você representa para mim são dores que tento esquecer e não consigo.


—Eu preciso que me perdoe! Por favor! — Disse ele, tentando em um ato desesperado, tocar as mãos de Sarah.


— CHEGA! — Dando um berro e jogando-se para trás na cadeira. Os olhos incisivos, dominados pela ira, fulminavam o homem que implorava. — Suma daqui Jonas! Nunca te perdoarei por que para mim você não existe. É só um filme ruim que me deixou impressionada e nada mais.


— Mas...
— Nunca!


Ela afundara a cabeça entre os braços, a chorar. Como uma criança repetia diversas vezes ao homem a sua frente “Nunca!”... “Vá embora!”... Sequer percebera que ele se afastava lentamente, sem nada dizer. Apenas observando, desaparecera na penumbra do amanhecer.


Alguns segundos, e a menina percebera algo vibrando no bolso do casaco fino vermelho. Era seu telefone, que na tela exibia uma mensagem de número desconhecido. Atendeu de pronto:


—Alô?


— Alô! É a senhora Sarah Costa?


— Sim... quem fala?


— Senhora Sarah, aqui o oficial de polícia Medeiros. Estou ligando, pois encontramos o corpo de um homem morto esta madrugada. Chamava-se Jonas Costa e deixou uma carta endereçada à senhora!


Ela engoliu em seco e o telefone escorregara de sua mão sem que percebesse. Os primeiros raios de sol inundaram o bar onde estava. O dia nascera mais uma vez.

Libero Discorso

2

Apesar do que muitos afirmam, viver pode ser uma arte muito simples, desde que possamos dar a esta vida um significado. Significado este que pode estar contido em nosso discurso, na forma de nos expressarmos no cotidiano. É fácil perceber nas pessoas que lhes falta significado em suas palavras, que acabam soltas ao vento sem muito dizer e pouco de útil a acrescentar. Como pode ter sentido minhas idéias se não as conseguir expressar?

É por isso que hoje quero lhes falar do significado de uma palavra, que fora proferida a mim, e a alguns dos colegas que aqui estão, em nosso primeiro dia de graduação, por um dos grandes mestres desta instituição.
A palavra é Descobrir.

Palavra simples, de apenas 3 sílabas , 6 consoantes, 2 vogais e talvez todo o sentido de nossa busca eterna pela verdade enquanto humanidade.
Descobrir pode significar simplesmente tirar a cobertura de algo que está coberto, que está encoberto. Desvendar, tirar a venda que cega o homem da verdade. Desvelar, retirando o fino véu que turva a visão de nossa verdadeira condição humana.
Durante séculos aprimoramos nossa ciência, desenvolvemos as mais fantásticas teorias e até ignoramos as crenças em busca de nossas respostas. Mas parece que hoje em dia, o véu tornou-se mais espesso, a venda mais pesada e grande parte de tudo que conhecemos cobre-se de alguma forma. Estamos cada vez mais longe da verdade, nos contentando com o resumo da notícia, com parcas percepções e análises irrisórias. Não nos preocupamos mais em nos aprofundar no esclarecimento, em conhecer, em descobrir...

Ao iniciar uma graduação todos tem suas aspirações individuais e seus sonhos, mas creio que os alunos sequer têm para si a dimensão e a importância daquilo que estão fazendo. Da importância coletiva, social, humana deste processo.
Eu, pelo menos, não tinha.
Sabe-se apenas que, como muitos vêm a nós e exclamam, fazemos parte de uma minoria privilegiada. Porém o que isso realmente significa, talvez só agora estejamos aptos a entender. Descobrimos enfim o significado desta grande empreitada.
Em uma sociedade onde ainda prevalece a força do capital em detrimento ao bem estar das pessoas e que pouquíssimos tem acesso a educação de qualidade, é preciso criar novas formas de organizar-se social e economicamente. Neste cenário cresce nossa responsabilidade enquanto profissionais preparados para gerir pessoas. Para entender e atender suas necessidades.
É certo que, como nos ensinaram os 28 tecelões de Rochdale, basta que um homem apresente uma idéia nova, que imediatamente dez homens aparecerão para esmagar o audaz inovador, nem sempre com a convicção de que a idéia nova é má, mas pela simples razão de que a ordem das coisas existentes não deve ser perturbada. Estes operários ingleses, pioneiros na descoberta de uma nova forma de organização social, provaram ao mundo serem capazes de mudar suas realidades. Descobriram o significado de sua história.

Por isso, caros colegas, convido-os, agora de posse do ferramental necessário, a fazermos parte de um grupo realmente engajado na empreitada de descobrir. Um grupo que não se contentará apenas com o resumo da notícia ou simplesmente servir de massa de manobra aos interesses de poucos, os mesmos que se escondem atrás do véu espesso que a pouco citei.
Façamos com que esta conquista que hoje, aqui celebramos, seja um aviso ao mundo, que em breve receberá de nós todo o empenho em melhorá-lo a cada dia. Em cada atitude e decisão que tomarmos. Em cada descoberta que pudermos fazer e que possa melhorar a vida de nossos pares.
Que aqueles que hoje nos assistem nesta da platéia, com olhos marejados de emoção, orgulhosos de nossa conquista, possam acreditar que todo o empenho que tiveram em nos ajudar nesta empreitada será recompensado pelas façanhas que realizaremos para o mundo. Façanhas talvez pequenas, mas de grande importância para aqueles aos quais dela se aproveitarão.
Acredito que seja este o grande significado de tudo isto que estamos vivendo, desta jornada que hoje parece se encerrar em glória, mas é apenas um prenúncio do que está por vir.
Encerro afirmando que foi um prazer ter convivido com todas as suas singularidades durante estes anos, caros colegas, aprendendo e descobrindo, juntos, formas de questionar o conhecimento que nos fora apresentado e de pensar aquilo que ainda não fora pensado. Aos mestres o agradecimento e ao mundo uma certeza:
Iremos fazer dele um lugar melhor.

Obrigado.

Parafraseando Nietzsche

2


O gosto difícil


Se me deixassem escolher livremente,
Escolheria de bom grado um pequeno lugar,
Precisamente no meio paraíso:
E, melhor ainda - diante de sua porta.


Friedrich Nietzsche